Há quatro meses, José Roberto Siqueira Castro, médico e pesquisador do Hospital das Clínicas de Belo Horizonte (MG), conheceu um paciente cujo quadro clínico era capaz de assustar até um leigo na medicina. O rapaz, de 18 anos, foi internado em dezembro por causa de distúrbios alimentares. Sentia tantas dificuldades para se alimentar que chegou a pesar metade do que costumava em épocas de boa saúde. “Ele media cerca de 1,80 metro e foi internado com 32 kg”, lembra Castro. Uma investigação minuciosa de tudo que pudesse envolver seu aparelho digestivo mostrou que não havia nenhum problema orgânico. Mas uma breve avaliação de sua estrutura psíquica revelou que o paciente apresentava um quadro sério de psicose, agravado pela morte da mãe, pouco tempo antes. Primeira charada resolvida: o problema do paciente era a somatização – ou seja, a transposição de problemas da mente para o organismo.
Décadas atrás, era praxe na medicina estabelecer que certos males específicos – como a hipertensão, a úlcera e a psoríase – eram doenças psicossomáticas, freqüentemente associadas a estereótipos de personalidades específicos. Hoje, os médicos concordam que toda doença tem algum componente psíquico. O conceito antigo já caiu por terra. “Não somos só corpo, mas corpo e mente”, explica o psiquiatra e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), José Atílio Bombana.
“A comunicação entre o ‘somático’ e o ‘psíquico’ vai muito além do que temos idéia.” Na Associação Brasileira de Medicina Psicossomática, já se fala até em doentes sócio-psicossomáticos, pois sua abordagem teórica parte do princípio de que qualquer doença tem três origens específicas, mas complementares: a biológica, a psicológica e a sociológica.
Os estudos e a experiência dos profissionais da medicina mostram que existem traços de personalidade comuns àqueles que tendem a somatizar. São, em geral, pessoas muito pragmáticas, com reduzida capacidade de fantasiar, imaginar, sonhar. Têm o que se chama de pensamento operatório. “Para eles pau é pau e pedra é pedra”, explica Bombana. Vêem as coisas de forma tão concreta que lhes parece mais simples viver os conflitos no corpo do que problematizá-los no psíquico. E nem as crianças escapam da somatização. Como elas têm as defesas psíquicas menos estruturadas, não é difícil que apresentem febre, falta de ar ou diarréia quando passam por algum tipo de sofrimento.
Freqüentemente confundidos com pacientes chatos, os somatizadores costumam intensificar muito suas rotinas médicas: vão constantemente a hospitais, pedem requisições para vários exames e procuram por novas medicações todo o tempo. Nos casos mais graves, tornam-se quase hipocondríacos. “Eles passam a viver em razão da doença”, diz Bombana, que também coordena o Programa de Atendimento e Estudos da Somatização do Hospital São Paulo, na zona sul de São Paulo. Dele participam cerca de 40 pessoas que, mesmo sem apresentarem nenhuma disfunção orgânica, sofrem com problemas gástricos, hipertensão, dores generalizadas e crônicas – ou com vários deles ao mesmo tempo. “A maioria são mulheres entre 40 e 50 anos e alguns se tratam conosco há mais de 10 anos. São ‘poliqueixosos’.”
Tratamentos – Não existe um remédio específico para tratar de pacientes somatizadores. Por isso, curá-los exige algumas habilidades especiais dos médicos. Como o problema não está apenas no plano físico, remédios comuns, para doenças pontuais, não são suficientes. Podem até não fazer diferença. Na opinião de Bombana, aliar a medicação ao acompanhamento psicológico é fundamental. “Se ficamos só nos remédios, os pacientes tendem a não deixar o tratamento nunca”, explica.
José Sampaio (o nome é fictício, a pedido do entrevistado), de 39 anos, tem conseguido muitos progressos seguindo essa orientação do psiquiatra. Há um ano ele participa de sessões semanais de psicoterapia em grupo no Hospital São Paulo para tentar curar os tremores e as dores que sente há mais de um ano, desde que parou de consumir bebidas alcoólicas. “Fiz uma bateria de exames, que não acusaram nada físico”, conta. Sampaio diz que os quatro colegas do grupo têm sintomas parecidos, mas os médicos nunca encontram causas orgânicas para os problemas. “Tinha a cabeça perturbada, achava que teria uma crise quando a dor começava.” Como trabalha durante o dia, às vezes Sampaio precisa faltar aos encontros, o que o entristece bastante. “Não gosto de faltar, mudei muito lá. Falo bastante, até me surpreendo!”
A abordagem interdisciplinar é, para José Roberto Siqueira Castro, do Hospital das Clínicas, a única saída. Foi assim que os médicos do Hospital das Clínicas conseguiram recuperar o paciente com distúrbios alimentares. “O HC formou uma equipe com médico clínico, gastroenterologista, psiquiatra, psicólogo, nutricionista, enfermeiros e até assistente social”, conta o pesquisador. O rapaz teve alta há duas semanas. Deixou o hospital com dez quilos a mais do que na época em que entrou. Agora, precisará de consultas semanais para que três especialistas – um médico clínico, um psiquiatra e um psicanalista – dêem continuidade ao tratamento e acompanhem a melhora. “Um vai cuidar da parte orgânica, outro poderá receitar os remédios e o terceiro se ocupará do discurso”, explica.
Embora reconheça a importância da psicoterapia nesse tipo de tratamento, boa parte dos pacientes resiste em falar sobre o que sente. Eles têm dificuldades até para pensar e analisar os problemas que os fazem doentes e preferem acreditar que a situação se resume ao corpo. “Querem tratamentos práticos: se possível, baseados apenas em exames e remédios”, diz Bombana. Sabe-se, no entanto, que a cura, assim, é impraticável. José Roberto concorda.
“Seria impossível que um médico apenas tratasse do rapaz com distúrbios alimentares.” Ele coordena o Grupo Interdisciplinar na Área de Saúde (Gids) do Hospital de Clínicas (HC), formado por 13 profissionais de diferentes áreas que estudam casos clínicos como o do jovem mineiro. Criado há seis anos, o Gids tem reuniões semanais e prima pelo trabalho em equipe, mas sabe o quanto isso é complicado. “O trabalho interdisciplinar provoca atritos que, enquanto administráveis, são muito saudáveis”, diz José Roberto.
Fonte: Estadão
Somatização: O poder da mente contra o corpo
Há quatro meses, José Roberto Siqueira Castro, médico e pesquisador do Hospital das Clínicas de Belo Horizonte (MG), conheceu um paciente cujo quadro clínico er
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