Sucesso absoluto de público, o show de Gilberto Gil, anteontem à noite, na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim, acabou por revelar sutilmente os dilemas e as contradições em que o músico e ministro da Cultura está envolvido.
O espetáculo, que botou para dançar a quase totalidade dos 1.200 espectadores presentes, abriu oficialmente a Copa da Cultura, série de 200 eventos culturais brasileiros programados para 20 cidades alemãs durante a Copa do Mundo.
Na superfície, o show de Gil foi uma celebração do caráter universal e fraterno da música: de Bob Marley a Luiz Gonzaga, passando por John Lennon e Chico Buarque, o músico exaltou a força da poesia cantada (e dançada) como elemento de troca e integração cultural.
O público se encantou, por exemplo, ao ouvir “Imagine” com um arranjo acústico que incluía bandolim, pandeiro e acordeom de 120 baixos. Ou “Asa Branca” com guitarra elétrica e percussão eletrônica. Música do mundo, enfim, muito mais do que o redutor rótulo de “world music”.
Repertório
Mas a escolha do repertório e, sobretudo, seu encadeamento revelaram muito da delicada situação em que se agita esse artista tornado homem político num momento de crise.
Numa interpretação vigorosa e irônica do tango “Cambalache”, de Enrique Santos Discépolo, um clássico sobre a esbórnia política e social latino-americana, Gil enfatizou com gestos a parte da letra que diz: “El que no llora no mama, y el que no afana es un gil”. Tradução da gíria portenha: “Quem não chora não mama, e quem não afana é um otário”. Levando em conta o governo de que o músico faz parte como ministro, o sentido se potencializa.
Em seguida a essa declaração entre cética e cínica, Gil mostrou sua outra face, a utópica e conciliadora, com “Imagine”, cujo refrão diz: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único. Espero que um dia você se junte a nós, e o mundo será uma coisa só”.
Pouco depois, voltando a demarcar posição em meio ao cambalacho brasileiro, o compositor apresentou quase com raiva sua “Nos Barracos da Cidade”: “O governador promete, mas o sistema diz não. Os lucros são muito grandes, mas ninguém quer abrir mão (…). A usura dessa gente já virou um aleijão”. O público delirava.
A única canção nova foi o samba “Balé em Berlim”, feito para a Copa do Mundo, que celebra em seu refrão o caráter multicultural do futebol: “Beckenbauer, Bauer, Barbosa, Bobô/ Puskas, Bellini, Eto’o”.
A vocação diplomática do músico, seu desejo de agradar a todos, veio à tona sutilmente na sua apoteótica interpretação de “Aquele Abraço”. O verso que diz “Alô, torcida do Flamengo” foi ampliado para “do Flamengo, do Vasco, do Fluminense e do Botafogo”.
Para a platéia de alemães e brasileiros em êxtase, essas filigranas políticas pouco importavam. Afinal, era apenas um show de música popular. Um dos melhores dos últimos tempos, mostrando que, independentemente da política, Gilberto Gil ainda é um artista em pleno vigor criativo.
fonte: folha online
Show de Berlim revela arestas de Gil
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