Em uma carreira de mais de 50 anos, ele ensinou gerações, criou estilos, propagou uma performance elétrica e remexeu nos fundamentos da música negra.
Ele disse em alto e bom som: sou negro e tenho orgulho disso. Ele disse em alto e bom som: o ato de dançar também traz consigo uma revolução embutida, mas é preciso entrega e sentimento. Ele disse em alto e bom som: o início de tudo foi na África, mas essa história ainda está longe de terminar. Em uma carreira de mais de 50 anos, mr. James Brown ensinou gerações, criou estilos, propagou um certo tipo de performance elétrica e remexeu continuamente nos fundamentos da música negra.
Foi sempre um desajustado, o que não surpreende pelo seu histórico familiar (abandonado pelos pais, criado num bordel e depois num reformatório). Mas nunca foi um desajustado sem cérebro. “´Nós somos seres humanos, gostamos de pássaros e de abelhas. Mas nós preferimos morrer de pé a viver ajoelhados´”, escreveu, em Say it Loud – I’m Black and I’m Proud, de 1968.
Era um líder. Tanto que, após o assassinato de Martin Luther King, quando as comunidades negras entraram em convulsão nos Estados Unidos, os prefeitos de Washington e Boston foram a Brown para pedir que ele intercedesse e ajudasse a serenar os ânimos.
Fora isso, na música, foi sempre um inovador, pelo menos até meados dos anos 80. Deu uma nova tintura ao velho soul e à música gospel, no início dos anos 60, ao lado da geração Stax (Otis Redding, Aretha Franklin). Depois, revitalizou o R&B. Em seguida, pegou o funk e o virou de ponta-cabeça, em 1965, ao propagar o sincopado hit Papa´s Got a Brand New Bag. Seria o suficiente? Não era.
“Musicalmente, o rap descende das improvisações do jazz, do essencialismo musical avant-garde, da crítica social do blues e do R&B e dos sons sincopados do funk e do soul de James Brown e outros artistas dos anos 70”, escreveu o historiador Paul Friedlander em Uma História Social do Rock and Roll. Canções de Brown dos anos 70, como Funky Drummer ou Sex Machine estão entre as mais sampleadas do mundo do hip-hop. Ou seja: James Brown está presente em todo o espectro da música negra mundial. Mas não só nela.
Em junho de 1964, os Rolling Stones desembarcaram em Nova York para sua primeira turnê pelos Estados Unidos. Em outubro, os Stones apareceram como atração principal do T.A.M.I. Show, ao lado de Chuck Berry, Marvin Gaye, das Supremes, Smokey Robinson e James Brown. No vôo de volta a Londres, Mick Jagger andava pelos corredores do avião imitando o jeito de Brown arrastar os pés, movimento que incorporou (à sua maneira) às performances, e que gerou comentários como este: “Os Stones têm um perverso e perturbador sex-appeal, com Jagger na frente de seus companheiros. Para as mulheres, ele é fascinante; para os homens, é perturbador”. Seria o suficiente? Não era.
Em 1969, o grupo Jackson Five iniciava sua fulminante carreira na música negra americana. Quem chamava mais atenção era o jovem Michael, de apenas 11 anos, artista-mirim cuja maior obsessão era copiar os passos de dança de James Brown. Passava horas estudando o mestre, e dali tirava suas coreografias.
Veio três vezes a SP
Veio a São Paulo três vezes (em 1988, no Palace e no Palmeiras; em 1994 no antigo Free Jazz Festival e em 1999, no Olympia), e sempre culminava suas apoteóticas apresentações com um chamado à pélvis coletiva, enchendo o palco de garotas dançantes, que juntavam-se às suas fantásticas acompanhantes. Era um entertainer fantástico, mas não só isso. Dizia que era um trabalhador da diversão, “o trabalhador mais ativo do show business”. Costumava, com aqueles acessos de zero modéstia que lhe eram peculiares, arrumar apelidos para si – o Chefão do Soul ou o Padrinho do Soul, Mr. Dynamite, Soul Brother n.o 1, o Ministro do Super Heavy Funk.
Segundo anotou Paul Friedlander, James Brown e Ray Charles, de trajetórias semelhantes, romperam os paradigmas da música negra americana. Mas Charles alcançou grande sucesso entre os diferentes públicos, uma aceitação massiva, enquanto Brown manteve-se, ao menos inicialmente, entre o público afro-americano.
A fama de Brown em apresentações ao vivo, a teatralidade exagerada, foi construída já a partir de seu primeiro single de R&B, Please, Please, Please. A banda pontuava a melodia enquanto o grupo de Famous Flames (que ele criou em 1955, tocando bateria e cantando), repetia a frase "Baby, please don´t go", e Brown se ajoelhava, implorando ao microfone que a sua garota não o deixasse. Aí, um Mestre de Cerimônias vinha e jogava um manto de veludo nas costas de Brown, levando-o aos soluços para fora do palco. Quando estava quase saindo, ele se revelava, jogava o manto para longe e voltava ao microfone, tentando um derradeiro apelo.
Aquele manto que ele jogava fora foi agarrado por muitos funksoulbrothers nas décadas seguintes, como o nosso Gerson King Combo, que o usa até hoje. O primeiro disco de Gerson, gravado em 1977, trazia um telegrama na contracapa assinado por James Brown, que ele conhecera num show em 1969, em Porto Rico.
Foi reverenciado por diferentes gerações em diferentes países. O nosso Tim Maia é seu equivalente tropical. Prince é seu ersatz do mundo bizarro. Joss Stone disse que as pernas tremeram quando ela cantou It’s a Man’s Man’s Man’s World, aos 16 anos.
“Ele exortava a platéia com sua voz tão rouca que parecia que uma de suas cordas vocais arrebentaria na nota seguinte, ao mesmo tempo que fascinava a multidão com seus movimentos acrobáticos no palco”´, escreve Paul Friedlander. Era uma mistura de toda a simbologia da negritude americana: como ex-boxeador, valia-se de uma forma física estupenda para fazer rodopios de 360 graus, para berrar e gesticular selvagemente como um pastor, para misturar ritmo e vigor em doses letais para os quadris da platéia.
Entre 1960 e 1970, James Brown emplacou 30 músicas entre as 40 mais tocadas, incluindo seu maior sucesso dos anos 60, I Got You (I Feel Good), que chegou ao terceiro lugar. Foi imitado no cinema pelo gato Garfield e no filme da animação Robôs. Fez ponta em Be Cool – O outro nome do jogo, ao lado de John Travolta, e em comédias românticas tolas como Muito Bem Acompanhada (The Wedding Date).
Tornou-se um símbolo, um ícone da música, alguém cujos feitos precediam sua própria figura. Foi preso quando criança e quando adulto, por coisas que fez e por coisas que deixou de fazer. Bateu em mulher e sonegou imposto, sendo condenado pelos dois crimes. Foi também contraditório – apoiou Nixon e Reagan, gente que nunca teve nada a ver com os movimentos pelos direitos civis. Mas ninguém jamais o julgou erradamente – era apenas um homem muito bruto com um talento infinito, e cujo coração era maior do que sua facilidade em arranjar encrenca, felizmente.
Fonte: estadao.com