“Sou exibida que nem a Bilu”, diz Vera Fernandes, de 12 anos. “Comecei a catar papelão e latinha com 6 anos. Tinha a mesma profissão do João”, diz Francisco Anawake de Freitas, de 13. Ex-moradores do centro de São Paulo, eles foram descobertos há dois anos pela equipe da cineasta Kátia Lund, de Cidade de Deus, e se tornaram protagonistas do curta-metragem Bilu e João, sobre crianças que vivem da reciclagem de lixo. O curta é um dos sete episódios de Crianças Invisíveis, que estreou no Brasil em 31 de março e reúne alguns dos maiores diretores de cinema da atualidade, como John Woo e Spike Lee. Na Itália, Crianças Invisíveis foi um dos filmes mais vistos de 2005. Nos próximos dias, estreará em diversos países, como Alemanha, Grécia e Japão.
Através da tela do cinema, Verinha e Anawake viajarão pelo mundo. Vão da China aos Estados Unidos. Da África ao Leste Europeu. De Sérvia e Montenegro à Itália. Esses são os outros cenários do filme, que mostra a infância acuada pela Aids, pela guerra, pelo crime e pelo abandono. Talvez os adolescentes brasileiros tenham se dado bem nos papéis porque emprestaram a seus personagens parte da própria história. Ela é a terceira filha de uma militante sem-teto e perdeu o pai vítima de cirrose. Ele é o 21º filho de uma catadora de papelão e de um pedreiro. Ela já morou na rua e parou de estudar várias vezes. Ele foi obrigado a abandonar os livros e começou a pilotar o próprio carrinho para recolher latinhas dois anos depois de começar a trabalhar. “Era a minha Ferrari”, brinca. Agora, ela só quer estudar e ser veterinária. Está na 4ª série. Ele, que está na 6ª, também não pensa em largar a escola e, “se conseguir”, pensa em ser policial. “Não quero ficar famosa, só ter uma vida melhor”, diz a menina.
Verinha e Anawake lançaram holofotes sobre batalhões de crianças e adolescentes invisíveis. Cidadãos que o poder público e a sociedade não enxergaram ou não querem ver. Cerca de 1,5 milhão de brasileiros na faixa dos 7 aos 14 anos estão fora da escola. Pelo menos 2,7 milhões dos que têm entre 5 e 16 anos trabalham ilegalmente. Esses trabalhadores mirins são parte de um exército de 200 mil catadores de lixo que dependem da reciclagem para sobreviver no Brasil. “Mesmo que essas crianças não merecessem atenção, não há justificativa econômica pragmática para não investir na infância”, diz Mário Volpi, oficial de projetos do Unicef. Pesquisas mostram que educar as crianças é três vezes mais barato para o Estado que investir em medidas compensatórias mais tarde, segundo Volpi.
São-paulino na ficção e corintiano na vida real, Anawake só escolheu a camisa tricolor porque era a mais vistosa entre as oferecidas pela produção do filme. “Tinha uma perua cheia de camisas, mas eram todas feias. Escolhi a vermelha porque achei bonita”, conta. Bilu e João até que se dão bem. Mas Verinha e Anawake brigam feito cão e gato. “Um dia mordi o braço dele e arranquei um pedaço. Daí ele me deu um murro na cara”, diz a menina. “Arrancou um pedaço nada”, afirma o garoto. Uma das tarefas mais difíceis dos professores de interpretação foi fazer os protagonistas do filme abandonar a competição e se tornar parceiros. “Eles brigavam o tempo todo. A integração só aconteceu quando fizemos uma brincadeira em que os dois, juntos, tinham de nos vencer”, diz Kátia Lund.
Nos últimos tempos, brincadeiras têm sido mais freqüentes na vida dos adolescentes. Antes, Anawake só tinha tempo livre aos domingos. Costumava varar dia e noite recolhendo recicláveis. “Às vezes, minha mãe me acordava às 7 horas e eu só parava de trabalhar no outro dia”, afirma. “Trabalhar é muito chato e perigoso. Só parei depois do filme”. O momento mais trágico da jornada da família do garoto aconteceu quando um sobrinho dele morreu atropelado por um ônibus na 25 de Março, tradicional rua do comércio popular da capital paulista. A criança, de 3 anos, estava sendo transportada em cima de uma pilha de papelões. Numa curva, o coletivo esbarrou na lateral da carroça e a lançou no asfalto. Em seguida, passou por cima de seu corpo miúdo.
João é risonho e dono de um ar leve. Anawake é tímido e revela um olhar entristecido. Como vivia às rusgas com a mãe, fugiu de casa para morar com o pai em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. “Eu e minha mãe não se gosta muito”, afirma. Ele mantém contato com “umas oito irmãs”. As outras, segundo ele, estão espalhadas pelo Estado, casadas e com família. Entre as recordações da infância estão suas duas únicas festas de aniversário, com bolo, refrigerante e cerveja. “Não sei o dia nem o mês que eu nasci. Mas eu não se importo. Não gosto de fazer aniversário porque é chato”, diz. Quando conseguia dinheiro razoável com os recicláveis, Anawake comprava doces e jogava fliperama. Comia de verdade apenas uma vez por dia. No almoço, o cardápio não variava: café preto com pão. O jantar, mais farto, acontecia na mesa de um boteco.
“Sou uma formiguinha, com o dinheiro que ganhava também comprava doces”, conta Verinha. Quando a polícia expulsou a família dela de um prédio invadido no centro de São Paulo, todos foram parar na rua. Ela conta que tinha medo. “A gente ficou uns três meses morando na rua. Vi na televisão que as pessoas tava tacando fogo em mendigo. Mas, no nosso grupo, alguns homens ficavam acordado de noite pra tomar conta da gente.” Nas calçadas do centro, ela brincava de pega-pega e pulava elástico. “Era difícil pra tomar banho e, por isso, a gente não ia pra escola. Sobrava tempo pra ficar correndo na rua”, afirma. A menina diz que, quando queria, pegava um carrinho emprestado e ia com uma amiga procurar latinhas e papelão. “Fazia isso quando queria comprar mistura, porque às vezes só tinha arroz ou feijão para comer. Mas agora não preciso mais trabalhar, ainda bem.”
Depois, Verinha foi morar com a mãe, dois irmãos e um sobrinho numa pensão. Quando o governo atrasou os R$ 250 do programa Renda Cidadã, a família foi despejada de novo. Mais uma vez todos foram parar no asfalto. Graças ao apoio dos produtores do filme, agora a menina mora numa casa alugada na zona norte da cidade. Verinha e Francisco têm um tutor e a mãe dela conseguiu um trabalho. Bilu e João cruzaram o caminho dos dois e podem mudar seus destinos. “Depois de Cidade de Deus, passei dois anos no projeto Nós do Cinema dando apoio aos atores do filme. A partir dali, pensei em trabalhar com pessoas que tivessem vida mais estruturada porque acabo me envolvendo muito. Mas não teve jeito, me apaixonei por essas crianças”, diz Kátia Lund.
Cansada de retratar o crime, a cineasta diz viver uma nova fase. “Estava deprimida. Já falei do tráfico em Notícias de uma Guerra Particular e em Cidade de Deus e não agüento mais olhar para esse universo. O discurso tem de evoluir. Quero falar agora do que pode dar certo. Mais de 99% dos moradores de favelas não entram no crime, mas eles nunca são lembrados. Temos de dar espaço para essas pessoas crescerem. Se não dermos e elas crescerem tortas, não poderemos reclamar depois.”
Fonte: Globo.com
A arte imita a vida
Através da tela do cinema, Verinha e Anawake viajarão pelo mundo
Mundo
Mundo
Mundo
Mundo
Mundo