Numa provocação infantil e irresponsável, um jornal conservador da Dinamarca, o Jyllands-Posten publicou em 30 de setembro de 2005 uma bateria de 12 caricaturas ridicularizando o profeta Maomé. Logo foram reproduzidas por um diário na Noruega, seguida por outros jornais europeus. Foi o que bastou para que uma tempestade de cólera e indignação varresse o Islã contra os dois países nórdicos (que simbolicamente têm a cruz na sua bandeira). Tanto na Europa como no restante do Mundo.
Uma tempestade de fúria
Em Jacarta, capital da Indonésia, e em Damasco, capital da Síria, multidões furiosas lançara-se contra as embaixadas dinamarquesa e norueguesa aos gritos de blasfêmia. O mesmo deu-se no dia 4 de fevereiro de 2006 em Beirute, capital do Líbano, sendo que desta feita foi um consulado que viu-se totalmente depredado por uma turba de jovens coléricos. No Iêmen, 10 mil mulheres desfilaram em protesto. A Líbia e a Arábia Saudita retiram seus embaixadores de Copenhagen. Esta “guerra das caricaturas”, é mais um desdobramento da crescente tensão que separa cada vez mais o Ocidente do Islã.
Desde que Napoleão realizou sua famosa campanha do Egito, nos finais do século XVIII, o Oriente Médio transformou-se num palco das rivalidades dos impérios europeus. O alvo do general francês não era controlar as populações muçulmanas ou mesmo extrair algum proveito das riquezas locais, mais sim infringir um dano estratégico à Grã-Bretanha, então arquiinimiga da França Republicana (o famoso corso pensou, ao ocupar o delta do Nilo, isolá-la das suas possessões na Índia). Os povos locais, egípcios, palestinos ou sírios, não contavam, muito menos os interesses deles. O Islã de então se encontrava estagnado, afundado no atraso das suas areias sagradas.
No passado, todavia, não fora assim. A espada do Profeta, indo à frente da expansão do islamismo, intensa desde o século VII, provocara pânico na Europa, a ponto do historiador Fernand Braudel assegurar que todos lá viraram cristãos naquela ocasião por medo da presença avassaladora dos que seguiam Maomé. Submeter-se ao Crescente significava para os europeus avassalar-se a um chefe mouro, dar seus bens e sua alma a uma fé estranha, ser servo da gente bárbara e ascética do deserto. Um mundo que nada tinha a haver com o deles.
Daí entender-se a popularidade das Cruzadas, desencadeadas pelo Papado com auxilio dos cavaleiros cristãos, a partir do século XI, para recuperar os lugares santos em Jerusalém que, segundo os cristãos, estariam sendo profanados pela presença dos infiéis. Como também explicar a fúria antiislâmica de Dante, o maior poeta da cristandade, que reservou um lugar pavoroso no inferno para lá colocar um Maomé destripado e submetido a torturas perpétuas (A Divina Comédia, Canto 28).
Quanto tempo demandou para que a sensação da ameaça dos mouros declinasse? Séculos supõem-se. O deslocamento do eixo comercial das cidades mercantis da Europa para o Atlântico (é simbólico que tenha sido um navegante genovês quem tenha descoberto o Novo Mundo e que um outro tenha desbravado a América do Norte) acelerou o esquecimento em que o Oriente Médio foi relegado pela Europa em expansão.
A decadência do Oriente Médio
Desde tempos muito remotos, os povos e as cidades daquela região haviam assumido o papel de intermediários entre o Oriente e o Ocidente, fazendo do mar Mediterrâneo um lago intercomunicante entre os dois hemisférios comerciais: o Europeu e o Oriental. Ora, com a exploração e conquista do oceano Atlântico, a partir dos finais do século XV, e dos outros mares que a seguiram, o Oriente Médio perdeu a função de intermediação entre os dois hemisférios. Um dos efeitos disso, no campo das idéias, foi que os notáveis filósofos dos tempos medievais, um Avicena, um Al Farrabi, um Averróis, não tiveram sucessores no campo árabe. A ciência que desenvolveram, as artes médicas que tanto os celebrizaram, entraram em decadência ou simplesmente murcharam. Exatamente o contrário do que se passou no Ocidente.
Abriu-se então, com a estagnação geral que por lá se instalou, o caminho para a hegemonia teológica dos imãs, os sacerdotes islâmicos, que mantiveram o Oriente Médio aferrado às leituras ortodoxas do Corão. O que, evidentemente, significou o fim das respeitáveis conquistas racionalistas alcançadas anteriormente, nos tempos do apogeu dos califados de Damasco, de Bagdá e de Córdoba, e bloqueou ou inviabilizou a possível conversão do Oriente Médio ao Iluminismo.
No século XIX, com a aceleração da expansão colonialista, a África do Norte e o antigo Levante novamente viraram tabuleiro dos interesses estratégicos das potências européias. Napoleão fizera escola. A Argélia sucumbiu aos franceses em 1830, no começo da década de 1880, foi à vez dos britânicos se assenhorearem do Egito, e, em seguida, do Sudão, enquanto a Itália se apropriava da Líbia, em 1911. Em pouco tempo a África e o Oriente Médio, como se fossem pedaços de bolo, caíram devorados pela boca do colonialismo.
A Palestina, o Líbano-Síria e a Mesopotâmia, que até então fora parte do Império Otomano, foi partilhado pelos anglo-franceses depois da Primeira Guerra Mundial (desdobramento do acordo secreto Sikes-Picot, de 1916), pondo fim as esperanças dos chefes árabes em alcançar a tão almejada independência. Até 1945 quase tudo por lá era inglês ou francês.
As lideranças muçulmanas se dividiram. Os religiosos mais teimosos inclinaram-se em rejeitar tudo aquilo que viesse do Ocidente, inclusive as inovações tecnológicas, tais como o telégrafo e o telefone, abjurando-os como instrumentos satânicos. Uma minoria da elite mais esclarecida, ao contrário, acreditou que somente aprofundando a ocidentalização, adotando os meios administrativos, educacionais e tecnológicos dos colonialistas, haveria uma possibilidade de adquirir algum dia a autonomia econômica e a liberdade política para o povo do Islã.
A situação do pós-Segunda Guerra Mundial
Até 1945, os dois Impérios Colônias, o britânico e o francês mantinham-se no controle de milhares de quilômetros quadrados de território islâmico, área que se estendia das margens do oceano Atlântico, ao ocidente, até o mar Arábico no oriente. Território esse que se valorizara de um modo extraordinário devido às constantes descobertas de novos lençóis petrolíferos (os subsolos da Arábia Saudita, do Kuwait, dos Emirados Árabes, do Iraque e do Irã comportam 60% das reservas petrolíferas do mundo).
Quando os colonialistas foram forçados a recuar, ambos trataram ou de resistir (Guerra da Argélia, 1956-1960) ou de formar monarquias dóceis ao colaboracionismo (dinastia Hachemita, que controlou a Jordânia e o Iraque, entre 1920-1960, e a do rei Faruk, no Egito). Situação que levou ao levante nacionalista do coronel Gamal Nasser no Cairo, de 1952, e a uma série de golpes militares que seguiram na mesma linha de emancipação (como o do general Karim Kassem no Iraque, em 1958, e o de Muhammad Kadafi, na Líbia, em 1969).
O recuo do colonialismo europeu, todavia, não trouxe a esperada paz para a região. Bem ao contrário.
ATUALIDADE:A guerra das caricaturas: Ocidente versus Oriente
Numa provocação infantil e irresponsável, um jornal conservador da Dinamarca, o Jyllands-Posten publicou em 30 de setembro de 2005 uma bateria de 12 caricaturas
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