É o prazer da joaninha andando na folha ao sol, a inveja da pedra onde a amada se deita, a boca-luva, o rosa-vulva – e o Rio de Janeiro. Mas também a CPMF, a devastação da mata, a mulher que, se fosse planta, seria comigo-ninguém-pode. É o degradê sonoro e poético que Djavan faz no seu novo disco, Matizes (R$ 25), já nas lojas pela gravadora do cantor e compositor, a Luanda Records.
Matizes tem 12 músicas inéditas, pelo menos metade delas djavânicas. São aquelas canções que se tornaram a marca de Djavan, arranjos vigorosos, calcados em blues, para letras aparentemente simples, mas de soluções nem tanto, e imagens que instigam, ficam na cabeça. Caso de Pedra, tipo de música que pode ganhar nossa intimidade na marra e, quando a gente vê, está na lista das dez mais de cada um de nós.
Senhor de sua carreira, e certeiro nos passos dela, Djavan dá respostas aceleradas. Quando fala como arranjador, é matemático. Confessa que compõe para si mesmo, e que quando sai do estúdio achando que tem uma música boa, nem quer saber de opiniões alheias. E se mantém admiravelmente seguro, sem entretanto um pingo de empáfia, num mercado que classifica como convulso.
Disco nas lojas, começam os ensaios para o novo show, que estréia em outubro no interior de São Paulo, e segue para temporada na capital, no Citibank Hall. Na tarde de segunda-feira, 10, na tranqüilidade do MAM do Rio de Janeiro, Djavan recebeu o Estadão.
Quando a gente fala em matizes, pensa num conjunto harmonioso. Como foi, então, o processo de composição deste novo disco, e o quanto da idéia do todo você tinha na cabeça quando começou a compor?
Desta vez foi um pouco diferente, porque quando eu acabei a turnê do Vaidade (lançado em 2004), a Rafa (Rafaela, sua mulher) estava grávida do nosso segundo filho, Inácio. Ela teve uma gravidez difícil e eu quis ficar com ela. Então, não compus o disco de uma vez, gravei às vezes durante duas ou três semanas num mês, para depois ficar um mês sem gravar nada. Eu meio que fiz essa conjunção entre ficar com o bebê e a Rafa, e a produção do disco.
Em Matizes, chama a atenção a faixa Imposto, uma música de protesto, com uma base de bossa nova. Por que resolveu usar uma música tão suave para falar de um tema tão árido quanto o da carga tributária?
Acho que a credibilidade é maior, passa melhor a imagem. Você é obrigado a parar para ouvir. Em geral, uma música que conduz uma letra de protesto é exteriorizada, para fora, é mais agressiva e tal. Eu queria justamente o oposto.
Você mora no Rio há 30 anos. Por que só agora fez uma música para a cidade (Delírio dos Mortais)?
O Rio de Janeiro é uma cidade muito cantada, muito decantada. Portanto, é um desafio grande você fazer música para a cidade, falar desses símbolos tão internacionalmente conhecidos com um certo frescor. Eu resolvi fazer por ser um desafio, e também pelo fato de eu achar que estava devendo uma música exaltando a cidade, por tudo o que ela me deu.
Como foi que uma mulher que se fosse planta seria comigo-ninguém-pode virou sua musa? Uma pessoa difícil de ser retratada numa música, não?
Sim, difícil. Mas é uma música de inspiração genérica. Não saberia dizer, pode até ser que eu tenha convivido com uma mulher difícil assim. Não agora, que estou casado, a Rafa é ótima, a gente se ama. E todo mundo, toda hora, se depara com um homem ou com uma mulher difícil de seduzir.
Mesmo assim, essa mulher merece uma música?
Quando você gosta, a pessoa merece qualquer coisa que você possa dar.
Parece que não termina nunca essa busca não sei se da crítica ou se do mundo da música em geral, pela vanguarda. Mesmo com 30 anos de carreira, seu nome ainda é associado à vanguarda. Isso é uma preocupação na hora de compor?
Não na vanguarda dos outros, mas na minha. Eu tenho uma busca incessante pela novidade que eu julgo novidade no trabalho que estou fazendo naquele momento. Tenho uma carreira longa, fiz muita coisa. E tenho uma autocrítica muito grande, é muito difícil eu me agradar. Fique certa disso: eu não penso em nenhuma outra coisa quando estou compondo a não ser agradar a mim mesmo. Nunca fiz para ninguém, fiz para mim mesmo.
Mas não acontece de mostrar uma canção que não achava tão boa e, diante da reação da pessoa, mudar de idéia?
Essa sua ressalva é ótima, porque embora eu pense dessa forma, eu tenho família, amigos, pessoas de quem eu respeito a opinião. Essas pessoas são capazes de me demover de uma idéia, mas é difícil. E acho que não pode ser diferente, porque para você sedimentar uma estilo, uma carreira, você tem de ter uma segurança, uma certeza.
É o terceiro disco da sua gravadora. Na elaboração de um trabalho autoral, faz diferença ser o dono da gravadora? Já se sente à vontade nesse papel de empresário?
Na verdade, eu nunca estive nesse papel, porque quem comanda tudo é minha empresária, Mara Rabello. Claro que eu estou ali para dizer as coisas mais importantes, mas abri a gravadora para exatamente ter mais campo livre para fazer o meu papel de compor e cantar. Quero conduzir minha carreira de maneira totalmente independente e individual. Eu não saí de gravadora para ter liberdade de trabalho, de criação, as gravadoras nunca interferiram nisso.
Li uma frase atribuída a você, de que é preciso ter sorte na vida até para atravessar a rua. Na fabricação de um hit, e você já fabricou muitos, quanto é sorte, quanto é tiro certeiro?
Eu me lembro de ter dito essa frase, mas não é minha. Sobretudo hoje em dia, na convulsão que está o mercado, ninguém tem certeza de nada, por mais que a música seja boa. É que quando ela é boa, a esperança é maior. É o tipo de coisa que a rigor, em época nenhuma esteve nas mãos de ninguém. Às vezes, uma música boa se perde, se dilui, numa veiculação malfeita. Ninguém tem certeza de nada, e a única pessoa que pode determinar o que vai fazer sucesso é o dono de uma rádio poderosa. Ele pode dizer essa música vai fazer sucesso porque eu quero. Agora, o artista, jamais.
Fonte: Estadão