Um menino africano, doze anos, fuzil nas mãos e olhar destemido mesmo quando encara uma patrulha do exército. Porém, seus sentimentos vêm à tona quando se depara com uma sala de aula, um quadro negro e material escolar. É na escola que ele gostaria de estar.
Um alerta à sociedade. Assim pode ser definido o objetivo do filme “Crianças Invisíveis”, formado por sete curtas-metragens de diretores do mundo inteiro. Apesar de fictícia, a obra pode ser confundida com um documentário pela forma como a realidade é fielmente retratada, seja nas ruas da cidade de São Paulo ou nas paisagens áridas, cenário de guerra civil, da África. Mesmo com roteiros bem diversificados, o filme pode ser resumido em crianças lutando para sobreviver e com o simples desejo de viver sua infância.
“É um filme incômodo, que fala do nosso presente, do nosso cotidiano e daquilo que não vemos porque não queremos ver, já que está na nossa frente”, acredita a professora de sociologia da Universidade Metodista de São Paulo Verônica Aravena Cortes. A vulnerabilidade das crianças expostas sensibiliza o espectador, com a função de fazê-lo prestar atenção ao seu redor e agir para mudar a situação na qual se encontram as crianças, não apenas do filme, mas da realidade também.
As denúncias sociais feitas por sete grandes diretores, com diferentes linguagens e culturas, e o apelo para fazer com que a sociedade acorde para essa realidade cruel que oprime a infância são, na opinião da professora, os pontos positivos do longa. A crítica de cinema Lívia Brasil, do site Cineclick, concorda e completa, elogiando a atuação dos protagonistas ao dizer que “todas as crianças são muito boas. Todas passam a mensagem e te fazem questionar se aquilo é interpretado ou é realidade. É impressionante!”.
Pelo tempo limitado de cada episódio, algumas questões acabam se tornando esquemáticas demais, segundo Verônica. Mesmo assim, ela acredita que a tarefa foi muito bem cumprida. “O ponto negativo do filme acaba sendo a própria temática”, explica. Para Lívia, quem está acostumado a produções comerciais pode não gostar de “Crianças Invisíveis”, pois é uma obra pesada e emocionante demais, da qual o espectador sai deprimido, principalmente os adultos. Além disso, ela destaca o fato do filme ter um formato muito diferente aos que as pessoas estão acostumadas, que pode tornar-se cansativo. “É um filme para pensar, não para entreter”, afirma.
A passagem que mais chamou a atenção de Verônica, além da que retrata as crianças brasileiras, foi a do diretor Emir Kusturica, que mescla drama familiar e um toque de humor para contar a história de Uros, um menino prestes a sair de um centro de detenção juvenil. Já a crítica destacou também o trabalho nacional de Kátia Lund, no qual São Paulo é apresentada do ponto-de-vista de duas crianças que trabalham e se divertem ao mesmo tempo e o de John Woo, considerado por ela o mais emocionante de todos os episódios.
A luta diária para poder ser criança é indiferente a classes sociais, raças ou nacionalidades, tal como a falta de responsabilidade dos adultos em preparar seus filhos para o mundo. “Será que não estamos caminhando para a destruição? Será que a gente tem próximas gerações construídas apenas com violência?”, questiona a professora. E mudar essa perspectiva pessimista é o papel dos novos adultos da sociedade, ou seja, os universitários, responsáveis pela construção do futuro.
Por isso, a professora indica a obra para estudantes de todos os cursos, já que profissionais de todas as áreas, sejam exatas, biológicas ou humanas precisam se conscientizar sobre a crise social em que vivemos e se preparar para os desafios que temos pela frente. “Mesmo um médico, por exemplo, precisa saber qual é a realidade, para não tratar o paciente só como um número. Mas quem tem mais afinidade são os alunos de ciências humanas e comunicação”, por conta das questões desenvolvidas no filme, completa Verônica.
Lívia acredita que os universitários podem ser atingidos por esse filme de uma forma mais positiva do que pessoas mais velhas, porque eles ainda têm fé no mundo e acreditam que podem mudar algo na sociedade. E finaliza, dizendo que “se, quando universitário, o jovem aprende a olhar para o lado social da vida e cresce com essa visão, com certeza será um adulto melhor”.
Episódios
Crianças Invisíveis é um longa-metragem dividido em sete curtas que buscam, através da ficção, refletir a realidade de crianças ao redor do mundo. Assim, mostra um grupo de garotos-guerrilheiros em luta na África, no episódio “Tanza” (dirigido pelo argelino Mehdi Charef); crianças ciganas obrigadas a roubar pelo pai alcoólatra na Sérvia, em “Ciganos” (do iugoslavo Emir Kusturica); uma adolescente americana que enfrenta a dramática descoberta de que é portadora do vírus da Aids, no conto “Crianças de Jesus na América” (do americano Spike Lee); o jeito de “se virar” para sobreviver de um casal de irmãos que andam pelas ruas de São Paulo, em “Bilu e João” (da brasileira Kátia Lund); o drama existencial de um fotógrafo de guerra inglês que volta à infância para exorcisar os demônios que o atormentam e encontra as respostas na força da união de crianças que sobrevivem à guerra, em “Jonathan” (dos britânicos Jordan e Ridley Scott); o choque entre o lúdico e o real vivido por um garoto ladrão na cidade de Nápoles, em “Ciro” (do italiano Stefano Veneruso); e a linha comum que une duas pequenas garotas chinesas, uma encastelada na solidão e tristesa de seu mundo rico e outra no drama da miséria e do abandono após a morte de seu protetor, em Song Song e a Gatinha (do chinês John Woo).
Fonte: Universia