Aline Lins

STF: “Cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”

Já na carta de Pero Vaz de Caminha, certidão de nascimento do Brasil, a censura fez suprimir trechos considerados ‘indecorosos’ […]

Já na carta de Pero Vaz de Caminha, certidão de nascimento do Brasil, a censura fez suprimir trechos considerados ‘indecorosos’ pela Igreja Católica. Com cicatrizes profundas da ditadura militar, qualquer outro desfecho seria inaceitável no Supremo Tribunal Federal (STF). O Pleno, finalmente, enfrentou, nesta quarta-feira, dia 10 de junho de 2015, a contenda que tramita desde 2012 sobre a censura prévia e a proibição das biografias não autorizadas; o conflito entre princípios constitucionais antagônicos, quais sejam, a liberdade de expressão, o direito à informação e a criação intelectual versus o direito à privacidade e à imagem. Durante o julgamento, os atuais integrantes da Corte Superior se manifestaram, não apenas, contra a censura prévia à publicação de biografias, mas também condenaram a censura, em si, ratificando que ela é expressamente vedada na Constituição Federal. O julgamento fulminou por inconstitucionalidade os artigos 20 e 21 de norma infraconstitucional – o Código Civil -, incompatíveis com a liberdade de expressão e de informação, esteios da democracia.

Há riscos de abuso? Há. Mas imensuravelmente absurdo é censurar previamente, uma vez que o direito prevê formas para reparação – retratação, retificação, direito de resposta, indenização e responsabilização penal. Como disse a ministra Cármen Lúcia, “cala a boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu”.

À unanimidade, o Plenário do STF julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4815 e declarou inexigível a autorização prévia para a publicação de biografias, dando interpretação nos termos da Constituição da República aos artigos 20 e 21 do Código Civil, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença de pessoa biografada, relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas, ou de pessoas que com eles conviveram, os coadjuvantes.

A decisão ataca, portanto, o Art. 20. do Código Civil, que traz o seguinte: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”, bem como o Parágrafo único, que diz ainda: “Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.

Cai também o que vem dito no Art. 21: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
O voto da relatora, ministra Cármen Lúcia, proferido de forma literária, libertadora e inspiradora, foi seguido por seus pares, reforçando a vedação a toda e qualquer censura, seja política, ideológica ou artística. Prevalecem, assim, os princípios constitucionais do interesse público de informar e de ser informado, do livre pensamento.
Disse a relatoria, em seu voto, que “não é proibindo, recolhendo obras ou impedindo sua circulação, calando-se a palavra e amordaçando a história que se consegue cumprir a Constituição”. Mais: “A norma infraconstitucional não pode amesquinhar preceitos constitucionais, impondo restrições ao exercício de liberdades”, proferiu Cármen Lúcia.

Moderna e espirituosa, a ministra Cármen Lúcia observou que o buraco da fechadura continua a exercer fascínio, e questionou, afinal, os níveis de privacidade e intimidade de hoje, em um “mundo de portas escancaradas, abertas mesmo pelos seus donos”, “com câmeras nas ruas, nas casas e nos quartos”, “reclamar, pois, de quê?”. “O tempo é outro. Não há espaço pra choro. Sorria, você está sendo filmado”.

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