A decisão inédita do juiz Adriano Mesquita Dantas, do Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba (TRT-PB), de considerar inconstitucional a lei de cotas raciais (Lei 12.990/2014) deu início a uma discussão que ninguém tinha se atrevido a enfrentar ainda. Talvez pela repercussão negativa que já se vê de movimentos ativistas e nas redes sociais a acidez da opinião pública, por exemplo. A decisão, por polêmica que seja, que sirva de ponto de partida para a discussão que não ocorreu.
No âmbito da Justiça do Trabalho paraibana já se tem como certo que o processo vai cair para deliberação pelo Pleno do TRT-PB. Pode não parar por aqui – Tribunal Superior do Trabalho, Supremo Tribunal Federal, quem sabe onde isso vai parar, agora.
No caso do Pleno do TRT-PB, a parte ré poderá contar com o apoio do Ministério Público do Trabalho, que já na primeira instância foi contra o pedido da parte reclamante, ou seja, favorável à lei de cotas, sob a égide da tese de justiça social para com os negros, como explicou a representante do órgão, Edlene Lins Felizardo.
A decisão fundamentada do magistrado do TRT-PB pela inconstitucionalidade da lei afirma que ela viola o dispositivo constitucional que manda “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”; que viola o caput do famoso Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; o inciso que diz: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; e ainda que contraria os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, já que os negros acabam sendo duplamente favorecidos com as políticas afirmativas de cotas, para universidades e para concursos públicos.
Igualdade – A lei reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Para efeito de comparação, a já consolidada legislação para deficientes físicos prevê no mínimo 5% e no máximo 20% das vagas para esses candidatos. A maioria dos concursos reserva não mais que 5%.
Autodeclaração – Até então ninguém havia contestado a Lei sancionada por Dilma Rousseff em 2014, que em seu Art. 2º diz que “Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”. Que grau de legitimidade e de segurança – inclusive para os próprios afrodescendentes – essa autodeclaração assegura aos concorrentes de um concurso público? Como aí está, a Lei 12.990 abre brecha para que qualquer um se declare preto ou pardo e concorra dentro das cotas.
De forma semelhante pensa Adriano Dantas. “Ora, o Brasil é um país multirracial, de forma que a maioria da sociedade brasileira poderia se beneficiar da reserva de cotas a partir da mera autodeclaração (art. 2o da Lei n.o 12.990/2014), o que não parece razoável nem proporcional”, ponderou, na sentença.
Dupla concorrência – O juiz também chamou atenção para a ausência de critérios relacionados à ordem de classificação que, para ele, também fere a proporcionalidade, na medida em que basta o mero atingimento do ponto de corte da seleção para garantir a investidura do negro no cargo ou emprego, ainda que o mesmo seja, por exemplo, o último colocado. “Outrossim, permite aos candidatos negros o benefício da dupla concorrência (art. 3o da Lei nº 12.990/2014), ou seja, concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência e, ainda, exclui das vagas reservadas os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência”.
Negro rico – E o que é grave: segundo o magistrado, a inexistência de corte objetivo de cunho social na Lei nº 12.990/2014 privilegia o negro rico e de classe média em detrimento do negro pobre, quando, na verdade, esse último é que faz jus às políticas públicas de inclusão social. Ou seja, gera benefícios apenas para uma parcela dos negros (ricos e de classe média) que não enfrentaram dificuldades no processo de formação educacional e poderiam concorrer em igualdade de condições com os demais.
O Supremo Tribunal Federal chegou a discutir cotas nos autos da ADPF nº 186, que tratou da constitucionalidade da política de acesso às universidades públicas pautada no princípio da diversidade, com o propósito de enriquecer o processo de formação e disseminação do conhecimento, considerando o direito humano e fundamental à educação, necessário ao gozo de outros direitos como a liberdade e igualdade.
Princípios – No caso da lei de cotas 12.990, em sua decisão, o juiz Adriano Mesquita Dantas, do TRT, analisa que “não existe direito humano ou fundamental garantindo cargo ou emprego público aos cidadãos”.
“Na verdade, o provimento de cargos e empregos públicos mediante concurso não representa política pública para promoção da igualdade, inclusão social ou mesmo distribuição de renda. Nessas condições, não há justifica plausível para a instituição de critérios de discriminação positiva ou ações afirmativas nesse particular”, diz o magistrado, que fazendo um passeio pelos princípios constitucionais, defende também a nomeação do candidato mais capacitado, em atenção aos princípios da eficiência e economicidade no serviço público, “independentemente de origem, raça, sexo, cor, idade, religião, orientação sexual ou política, entre outras características pessoais”; cita ainda outros princípios da administração pública como a supremacia do interesse público e o princípio da indisponibilidade do interesse público.
De acordo com o juiz, “a reserva de cotas para suprir eventual dificuldade dos negros na aprovação em concurso público é medida inadequada, já que a origem do problema é a educação, para o que já foi instituída a respectiva politica pública de cotas (Lei n.o 12.711/2012 e ADPF nº 186)”.
As entidades representativas dos negros, naturalmente, começam a se organizar para reagir contra a decisão, que deve abrir precedentes no país. Pois que haja uma discussão saudável e construtiva, sem ataques. No Estado Democrático de Direito, decisão judicial se cumpre, e contra ela se recorre.