O poder do Congresso Nacional sobre o Orçamento público brasileiro é sem paralelo e não há registros de instrumentos parecidos com as emendas de relator nos maiores países do mundo.
É esta a constatação de especialistas em contas públicas que estudam os sistemas orçamentários ao redor do globo. Eles avaliam que até as emendas tradicionais assumiram uma dimensão no Brasil que não se repete no restante do planeta.
As emendas já fazem o Congresso decidir como serão empregados neste ano 24,57% do total de gastos livres (a fatia do Orçamento que pode ser manejada). Em 2014, ele controlava 4%. Essas despesas são aquelas em que o gestor tem poder de escolha, como investimentos, bolsas de estudo e manutenção da máquina pública em geral.
A maior parte do Orçamento brasileiro é composta por gastos obrigatórios (salários e aposentadorias, essencialmente). Assim, da parcela que sobra para o governo manejar, um quarto é decidido individualmente pelos parlamentares, sem qualquer estratégia de desenvolvimento ou projeto, em um momento de redução do investimento público.
“O que o Congresso está fazendo é ficar com o filé mignon para ele, definindo onde vão ser feitos os investimentos públicos. Nos últimos dois anos, metade dos investimentos foi decidida pelo Legislativo, sem nenhuma análise de custo-benefício, sem estudos, sem lógica, tudo feito com base nos pedidos das bases eleitorais, sem uma lógica de política pública. Não tem uma política pública coerente por trás”, afirma o consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados Helio Tollini, que acompanha há décadas a formatação das regras orçamentárias do Brasil e do mundo.
Para Tollini, nos últimos anos, o Legislativo se tornou dono de uma fatia inédita do Orçamento. Esse avanço se dá por meio das emendas parlamentares, um naco do Orçamento cuja destinação é apontada por deputados e senadores.
Há emendas individuais e de bancada, que seguem critérios equânimes de distribuição e de transparência na divulgação. Nos últimos três anos, ganhou corpo outro tipo: a emenda de relator. Ela não segue qualquer critério objetivo de distribuição e, até pouco tempo, também não se sabiam os beneficiados com os recursos — por isso, ganhou o nome de orçamento secreto.
O Congresso brasileiro avançou sobre o Orçamento com anuência do governo Jair Bolsonaro como forma de barganha política. Quem é aliado da cúpula do Congresso e do Palácio do Planalto consegue indicar recursos, geralmente destinados a obras e serviços em suas bases eleitorais. Por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), os beneficiários dessas emendas passaram a ser divulgados.
— As emendas de relator só existem no Brasil — afirma Tollini. — Não só emendas de relator, as outras emendas também são uma excrescência. Aqui são mais de nove mil emendas aprovadas no ano. Isso não existe em nenhuma parte do mundo. Não existe paralelo.
Um estudo recente do economista Marcos Mendes aponta que o percentual de gastos livres decididos pelo Congresso é muito superior ao dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) — grupo do qual o Brasil quer fazer parte. De 29 países, somente Estados Unidos, Eslováquia e Estônia aparecem acima da marca de 2%.
No Brasil, parte das emendas ainda é liberada de acordo com o desejo do governante de plantão para conseguir ampliar apoio no Parlamento.
Uma diferença marcante do processo orçamentário brasileiro com os demais países, segundo especialistas, é o grau de detalhamento das emendas. No Brasil, parlamentares tomam decisões específicas (como a construção de uma quadra de esportes em determinado local), em vez de decidir apenas em termos de grandes números e prioridades.
Leandro Couto, pesquisador sobre governança orçamentária do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), destaca que as emendas de relator deram um poder muito grande ao relator do Orçamento. Segundo ele, agora é o Executivo que vai atrás do Legislativo para conseguir alguma emenda para financiar sua política pública.
“A grande marca do atual regime de governança orçamentária é sua instabilidade… Ele está fortemente marcado pelo protagonismo do Legislativo. E, com esse novo tratamento dado às emendas de relator, o Legislativo tem protagonismo forte, que já chamo de semipresidencialismo orçamentário”, afirma.
“Hoje temos um Executivo com planejamento frágil e um Legislativo com um poder crescente. A consequência é que muitos ministérios buscam apoio de parlamentares para fortalecer políticas públicas.”
Aqui, além do alto percentual sobre o gasto livre, aprovam-se mais de 7 mil emendas todos os anos. Nos Estados Unidos, onde há um instrumento parecido com as emendas (e elas têm crescido nos últimos anos), as alterações equivalem a 2,4% dos gastos livres.
Nos países parlamentaristas “puros”, em que o Orçamento inteiro é negociado, uma emenda equivale a um voto de desconfiança no governo, levando a sua queda — nas democracias multipartidárias os partidos que não integram o governo expressam seu apoio apenas a todo o Orçamento, mas sem emendá-lo.
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Leonardo Ribeiro, especialista em orçamento público e assessor no Senado, diz que não há parâmetros únicos para comparar diferentes países e que cada nação tem suas peculiaridades. No Brasil, diz, o presidencialismo está pautado em cargos e emendas:
“É um jogo de soma zero. O presidente que for reduzir as emendas de relator vai ter que aumentar cargos.”
O modelo brasileiro causa surpresa e até certo estupor entre parlamentares estrangeiros. O deputado Nil Schmid, líder do governo do Partido Social-Democrata (SPD) na Câmara, ressalta que, na Alemanha, seria inadmissível um orçamento secreto:
“Em um país democrático, é importante que o dinheiro público seja administrado de forma transparente.”