local do incêndio

‘Época’ publica história da boate Kiss e traça perfil dos donos

  A boate Kiss foi inaugurada em julho de 2009. Bastaram dois anos para que se tornasse um sucesso entre […]

 

A boate Kiss foi inaugurada em julho de 2009. Bastaram dois anos para que se tornasse um sucesso entre os jovens de Santa Maria. A procura pelas festas na boate era tão grande que os clientes começaram a reclamar das filas que se formavam na frente. Do lado esquerdo da portaria, ficavam alinhados os que tinham comprado o ingresso com antecedência. Quem ainda precisava passar na bilheteria se mantinha à direita. As filas dos dois grupos invariavelmente dobravam as esquinas na Rua dos Andradas, onde fica a Kiss. Naquela época, com 26 anos de idade, o empresário Elissandro Callegaro Spohr, conhecido pelo apelido de Kiko, deu entrevistas dizendo que recebia até 1.400 pagantes, e isso tornava difícil a tarefa de organizar a entrada. Talvez ele inflacionasse o público por uma estratégia de marketing. A julgar pela tragédia do último final de semana, o exagero pode não ter sido tão grande. A polícia trabalha com a estimativa de que haveria entre 1.000 e 1.500 jovens na boate na noite da tragédia. O local poderia abrigar no máximo 691 pessoas, segundo diz o Corpo de Bombeiros.
 

Piloto de motocross, vocalista de uma banda de música e autointitulado modelo fotográfico e ator, Kiko sempre foi conhecido como um notável “baladeiro”. Bem-apessoado, com 1,80 metro de altura e tatuagem no braço esquerdo, era figura frequente em colunas sociais locais. Como empresário, ele tem um lado menos visível, revelado por documentos obtidos por ÉPOCA. Oficialmente, ele é proprietário não da boate, mas de um negócio com muito menos glamour. Ele tem uma revendedora de pneus, localizada nas cercanias de Santa Maria, a Vales Verdes. Ela deve em impostos cerca de R$ 3 milhões ao governo federal e seus bens foram penhorados.

A Kiss, cuja razão social é Santo Entretenimentos, está em nome de uma irmã de Kiko, Ângela Aurélia, e da mãe dele, Marlene Terezinha. O sócio real do empreendimento é um tarimbado empresário da noite de Santa Maria. Mauro Londero Hoffmann, de 47 anos, conhecido como Maurinho, é dono de bares, restaurantes e casas de shows. A principal delas, a luxuosa boate Absinto Hall, reúne num espaço de 800 metros quadrados, bem maior que a Kiss, cerca de 200 mil pessoas a cada ano, segundo informa o site da empresa na internet. Maurinho parece ter se associado a Kiko, comprando 50% das cotas da Kiss no meio do ano passado, para salvar o empreendimento da falência. A boate se tornou uma das três principais casas noturnas da cidade, embora seus resultados financeiros não fossem bons. O grande número de adolescentes sempre presentes na casa chegou a dar ao recinto o apelido de Kids. Essa reputação afastava o público mais velho e endinheirado.

Nascido e criado em Santa Rosa, cidade a 270 quilômetros de Santa Maria, Kiko pertence a uma família com boas condições financeiras, que administra a GP Pneus, empresa com filiais em outras regiões do país. Conhecidos diziam que ele abriu a boate motivado por uma veleidade artística – queria investir em seu lado cantor e enxergou na Kiss uma possível alavanca para o estrelato. Por isso, se interessava em atrair para a boate os jovens estudantes, a maioria das vítimas do incêndio. Divulgava cartazes estimulando turmas de universitários a organizar festas no local. A boate contratava a banda de música, imprimia o ingresso e divulgava o evento. O lucro vinha da venda de ingressos. Os estudantes organizadores ainda ganhavam uma comissão em dinheiro, fazendo caixa para a formatura, se vendessem com antecedência um grande número de bilhetes de entrada. O preço costumava ficar entre R$ 15 e R$ 25. A casa promovia entre três e quatro festas por semana.
 

No fim da tarde de segunda-feira (28), Kiko assistia ao noticiário na Globo News na TV do quarto 301 do Hospital Santa Lúcia, em Cruz Alta, a 130 quilômetros de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Chorando muito, ele dizia: “Como é que eu vou carregar isso? Como? Não sei o que vou fazer da vida”. Quem narra a cena é a inspetora da Polícia Civil da cidade, Maristela Gomes Figueiredo. Ela foi a primeira policial designada a observar Kiko depois de decretada sua prisão. Kiko estava muito abatido, mas sem ferimentos aparentes. Vestia uma bermuda e uma camiseta. Mal conversava com a mulher, Nathália, grávida de 18 semanas, internada no mesmo quarto que ele. Sob o efeito de sedativos, dormia e acordava sucessivamente. Enquanto esteve acordado, fez nebulização e reclamou de falta de ar e dores no corpo. “Eu estava lá, tentando salvar… Perdi amigos, funcionários”, dizia, sempre aos prantos. Jantou uma sopa no começo da noite. Ao ver o noticiário, baixou a cabeça e acrescentou: “Não sou esse monstro. Não sou esse monstro”.

Na quarta-feira, o policial que faz a guarda de Kiko encontrou no banheiro a mangueira do chuveiro enrolada na grade do banheiro, numa posição que sugeria que Kiko pudesse tentar cometer suicídio. Foi só então que a delegada Lylian Carús, de Cruz Alta, determinou que ele fosse algemado à cama, para evitar que se ferisse. O médico de Kiko, Paulo Ricardo Nazário Viecili, descarta a hipótese de suicídio e diz que Kiko tem tido crises nervosas e não tem previsão de alta. Na última quinta-feira (31), a Justiça negou o pedido de revogação de sua prisão temporária, feito por seu advogado, Jader Marques. No hospital, Kiko só tem recebido a visita de Marques, que não respondeu às ligações de ÉPOCA. A família de Kiko vive em Santa Maria. Ele disse à delegada Lylian que se internou em Cruz Alta somente porque sabia que os hospitais de Santa Maria estavam lotados.

HOMENAGEM As flores na frente  da boate Kiss, em Santa Maria, e as páginas criadas na internet depois da tragédia (acima).  As ruas da cidade e as redes sociais foram tomadas pelo debate sobre a boate  e o caráter de seus proprietários (Foto: Ricardo Jaeger/ÉPOCA e reprodução)

Kiko responde a uma acusação de lesão corporal grave contra um rapaz, espancado por seguranças da boate, em janeiro de 2011. O soldado da Aeronáutica Luiz Fernando Crispan, de 22 anos, golpeado por cassetetes, sofreu uma fratura exposta no braço direito. Crispan afirma não duvidar de que a ordem para a ação dos seguranças partiu de Kiko. Em outro episódio, em abril de 2010, Patrícia Jovasque Rocha, de 21 anos, ficou retida por horas dentro da Kiss porque perdera a “comanda”, onde se registra o consumo de bebidas e comida. Em agosto de 2012, a boate foi condenada a pagar indenização de R$ 10 mil a Patrícia.

Além do apreço pela vida noturna, Kiko e Maurinho têm em comum a atuação assídua nas redes sociais. Kiko é popularíssimo. Tem quase 24 mil seguidores no Facebook e 4 mil amigos apenas em seu perfil. Nos últimos dias, a internet serviu de espaço para que críticos e defensores dos dois se manifestassem, às centenas. Inocente do impacto que as declarações em redes sociais podem causar, Maurinho escreveu no Facebook às 6h17 da manhã do domingo, enquanto se contavam corpos na porta da Kiss: “Pessoal, tô bem… apesar da tragédia”. O comentário gerou uma avalanche de protestos dos que viram na mensagem uma prova de sua despreocupação diante da catástrofe.

Na Kiss, Maurinho era praticamente desconhecido dos funcionários e prestadores de serviço. “Nem sabia que ele era sócio. Achei que só fosse dono da Absinto”, disse um dos seguranças que trabalhavam na casa. Ao depor na polícia, Maurinho afirmou que não atuava na administração da boate e tinha apenas participação nos lucros. Após seu depoimento, foi levado, em caráter temporário, para o presídio de Santo Antão, a 7 quilômetros do centro da cidade.

Depois da tragédia, a prisão de Kiko e Maurinho foi decretada pela Justiça de Santa Maria, sob a suspeita de destruir provas que pudessem esclarecer o que ocorreu na noite do acidente. As imagens das câmeras de segurança da Kiss não foram localizadas. A polícia fez operações de buscas nas empresas de Maurinho, mas nada encontrou. Não há confirmação até agora de que os empresários tenham alguma responsabilidade pelo incêndio, mas suas atitudes levantaram suspeitas e revoltam os familiares das vítimas.

Marques, o advogado de Kiko, afirmou que a casa de shows tinha condições para funcionar e já tinha recolhido, em outubro passado, uma taxa para renovar o plano contra incêndio, mas o Corpo de Bombeiros não fizera a vistoria necessária para isso. Marques disse ainda que a boate imprimiu apenas 850 convites para a festa que terminou em 235 mortos (até o fechamento desta edição). O Corpo de Bombeiros diz que havia na casa entre 1.200 e 1.500 pessoas. Nos últimos dias, ficou demonstrado que a Kiss tinha sérias deficiências de segurança. Um dos funcionários da boate, um barman, que prefere não se identificar, defende Kiko. “Há três meses, ele pediu que trocassem todos os extintores da casa”, disse o funcionário em depoimento à polícia. Ele afirmou que todos os seguranças da casa sabiam usar os extintores. A versão foi desmentida pelo depoimento de um segurança que já trabalhara na boate e estava lá na noite do incêndio. Em seu testemunho, disse que “nunca recebeu instrução na firma ou na boate” sobre como mexer com equipamentos contra o fogo. Outra prática habitual na Kiss eram reformas que atendiam ao desejo 

Durante a semana, a polícia recolheu outros depoimentos contraditórios sobre ele. Uma funcionária que perdeu a filha no incêndio e teria motivos para atacá-lo fez vários elogios. Natalícia Moraes da Silva, lavadora de copos da boate, não foi trabalhar no dia por estar indisposta e enviou em seu lugar a filha, que morreu no incêndio. Ela acredita que a tragédia não passou de uma fatalidade e isentou o patrão de culpa. “Ele é um homem maravilhoso. Se ele está comendo um doce, e você está sem, ele divide”, disse. Ao mesmo tempo, Vanessa Vasconcelos, que deixou o cargo de gerente no fim de 2012, afirmou que Kiko achava “os extintores feios” e mandava tirá-los. “Só colocava de volta quando ia ter inspeção”, disse ela. Vanessa perdeu uma irmã na Kiss.

Enquanto a polícia investiga os empresários, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul rastreia o patrimônio deles. A medida visa garantir o pagamento de indenização às famílias das vítimas. Na segunda-feira seguinte à tragédia, a pedido da Defensoria Pública, a Justiça de Santa Maria determinou o bloqueio de bens e contas bancárias da boate, de Maurinho, de Kiko, de sua irmã e de sua mãe, que aparecem no papel como donas da boate. “Nenhum valor cobre a vida de um filho morto e há famílias que perderam mais de um. Mas, até a condenação dos culpados, o patrimônio dos réus costuma evaporar”, afirmou o defensor público-geral do Estado, Nilton Arnecke Maria. “A medida também serve de exemplo. Outros empresários evitarão tragédias com medo de que seus bens sejam bloqueados.” A Defensoria Pública afirma que já foram bloqueados cinco imóveis de Maurinho.

Garantir o ressarcimento não será uma tarefa fácil. A distribuidora de pneus da qual Kiko aparece como dono foi incluída no cadastro dos contribuintes que devem ao governo federal. Para garantia de pagamento da dívida de quase R$ 3 milhões, a Justiça penhorou os bens da empresa, que somaram R$ 1,1 milhão, valor insuficiente para cobrir o rombo. No dia 19 de dezembro passado, o Tribunal Regional Federal manteve a Verdes Vales na lista suja dos devedores.

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