Sentença da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, prolatada nesta semana, julgou improcedente em todos os seus termos Ação Civil Pública envolvendo serviço de entrega de refeições, compreendendo que não existe vínculo empregatício entre os entregadores e o aplicativo, considerando o modelo de negócio desenvolvido pela plataforma digital, a ausência dos requisitos legais para caracterização do vínculo de emprego e a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) na situação dos trabalhadores de salão de beleza, consignando, ao final, que a proteção ao trabalho humano não pode ser um obstáculo ao desenvolvimento.
O caso concreto se trata de uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho da 2ª Região em face de empresas detentoras de um aplicativo que intermedia o serviço de entrega rápida de comida, centralizando-se, por isso, na discussão acerca da relação jurídica existente entre os entregadores e o aplicativo. O MPT requereu a declaração da existência de relação de emprego entre entregadores e a plataforma digital, que esta se abstivesse de contratar trabalhadores como autônomos, manter intermediadores de mão de obra e instituir prêmios ou outras modalidades de remuneração, além de uma compensação pecuniária que não fosse inferior ao montante de R$ 24,5 milhões.
A empresa requerida explicou no processo que as suas atividades ocorrem primariamente através do modelo de marketplace, que representou, em 2018, 94% do total de pedidos no aplicativo, no qual a entrega dos pedidos aos consumidores finais é integralmente realizada pelos restaurantes, ausente a participação de parceiros de entregas cadastrados na plataforma (entregadores independentes ou operadores logísticos), sem qualquer tipo de ingerência da plataforma digital; e o modelo secundário denominado full service, em que os pedidos feitos pelos consumidores finais são encaminhados pela plataforma digital ao restaurante, ao mesmo tempo em que os parceiros de entrega cadastrados que estejam mais próximos daquele estabelecimento comercial são informados para que possam providenciar, de forma independente, a retirada do pedido e a entrega no endereço informado pelo usuário do aplicativo, com a possibilidade de, a seu critério exclusivo, não aceitar a entrega de um pedido específico.
A juíza sentenciante analisando o modelo de negócios da plataforma digital observou que envolve “duas formas de atuação, ou seja, por intermédio de operador logístico e por entregador independente”, constatando que “não restou comprovado no processo a alegada fraude para sonegar vínculo de emprego”, tampouco que o operador logístico realiza arregimentação de trabalhadores mediante falsas promessas de ganho e condições de trabalho, nem ainda que existiria vínculo de emprego entre o entregador e o operador logístico, aplicando, dessa forma, a permissão para terceirização da atividade-fim, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 324 e RE 958.252).
Nesse sentido, declarou-se “em razão do exposto, reconheço que a atividade da requerida é na área de tecnologia, explorando um aplicativo de internet que possibilita ao restaurante receber pedidos e ao entregador/motofretista prestar serviços de entrega, ficando a requerida com um percentual do valor da operação paga integralmente pelo comprador da refeição, não sendo sua atividade primordial a oferta de transporte de mercadorias e, ainda, que a relação entre a requerida e o operador logístico é de terceirização da atividade de entregador, ou seja, a requerida, nessa forma de atuação, é tomadora do serviço de entregadores ofertado pelo operador logístico”.
A sentença sublinhou no concernente ao entregador independente que tal “é realmente livre para escolher se quer trabalhar, quando quer trabalhar, por quanto tempo quer trabalhar, estando limitado ou motivado apenas pela necessidade inerente a qualquer ser humano de auferir renda para viver e seu anseio de quanto de renda pretende auferir”, consignando a ausência dos requisitos de subordinação, pessoalidade e continuidade, porquanto o entregador não tem obrigação de se colocar a disposição para receber chamadas de entregas, podendo recusá-las, sem punição, optando inclusive por meio de qual aplicativo fará a entrega.
Além disso, a decisão judicial também se fundamentou em uma analogia com a situação dos trabalhadores de salão de beleza, os quais embora realizem atividade-fim, utilizando-se da infraestrutura do estabelecimento, não existe reconhecimento de vínculo empregatício, por ausência dos requisitos legais, em conformidade com a jurisprudência do TST.
Entendeu-se, pois, pela ausência de vínculo empregatício por falta do preenchimento dos requisitos necessários, vez que “restou demonstrado que o trabalhador se coloca a disposição para trabalhar no dia que escolher trabalhar, iniciando e terminando a jornada no momento que decidir, escolhendo a entrega que quer fazer e escolhendo para qual aplicativo vai fazer uma vez que pode se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos desejar”.
Por fim, evidencie-se o aspecto de a decisão ter reconhecido que “o tema é novo, global e desafiante uma vez que, com a evolução tecnológica, um mesmo modelo de operação comercial, industrial ou de serviços se espalha pelo mundo quase que de forma instantânea, com elementos de figuras jurídicas diversas”, por isso a necessidade diante de casos concretos como este de “serenidade em sua análise com o objetivo de ter clareza acerca da legislação aplicável ao modelo que já está inserido em nossa organização social”, afinal “não é crível e nem razoável imaginar que toda a população possa e queria se amoldar entre empregados e empregadores”, de sorte que “todo trabalho humano deve ser protegido pela lei, na medida que não sufoque, aniquile, impeça ou dificulte o desenvolvimento”, não cabendo “ao Poder Judiciário alargar um instituto com o fim de com ele alcançar quem de fato e claramente está fora dele”.
Wilson Sales Belchior – Advogado e graduado em direito pela UNIFOR, especialista em Processo Civil pela UECE, MBA em Gestão Empresarial e mestre em Direito e Gestão de Conflitos na UNIFOR. Também possui curso de curta duração em resolução de conflitos na Columbia Law School, nos Estados Unidos. Na mesma instituição participou de série de pesquisa avançada. Palestrante, professor universitário em cursos de pós-graduação em diferentes estados e autor de diversos artigos e livros, publicados em revistas, jornais, portais de notícias e editoras de circulação nacional. Conselheiro Federal da OAB (2013-2015). Vice-presidente da Comissão Nacional de Advocacia Corporativa do Conselho Federal da OAB (2013-2015). Membro da Comissão Nacional de Sociedade de Advogados do Conselho Federal da OAB (2010-2012). Membro da Coordenação de Inteligência Artificial do CFOAB (2018). Atualmente é Conselheiro Federal eleito para o triênio 2019-2021 e Presidente da Comissão Nacional de Direito Bancário.