A utilização de novas tecnologias nos sistemas de justiça nacionais é uma realidade crescente em diferentes jurisdições, particularmente no que se refere à aplicação de Inteligência Artificial (IA), funcionalidades de aprendizado de máquina, processamento de linguagem natural, análise preditiva e mineração de dados, indo além da perspectiva de virtualização dos Tribunais e dos seus procedimentos, para incorporar a essas instituições, o atributo de “inteligente”, no sentido de uma integração total com a tecnologia.
Este não é um fenômeno recente, pois nos Estados Unidos, ainda no início do século XX, identificou-se a realização de estudos para suporte à decisão, com a finalidade de tentar prever a reincidência de prisioneiros que postulavam o livramento condicional. No final dos anos 2000, o governo australiano já utilizava essas tecnologias para automatizar a elaboração de decisões administrativas.
Desde então, inúmeros foram os avanços nessa área, abrangendo iniciativas de Online Dispute Resolution; digitalização dos processos; realização de audiências em meio eletrônico com transmissão em tempo real; geração automática de decisões de admissibilidade; análise de processos para identificar posicionamentos reiterados e prever decisões futuras; identificar padrões recorrentes em documentos jurídicos; uso de chatbot e outros aplicativos.
No Brasil, já se noticiou o uso de softwares que correlacionam casos concretos ainda sem julgamento com a aplicação de jurisprudência consolidada por repercussão geral; análise da tempestividade de recursos que chegam em Tribunais superiores; automação da triagem inicial e seleção dos processos aptos a julgamento envolvendo execuções fiscais de tributos municipais, apontando inclusive a existência de bens ou numerários passíveis de bloqueio; leitura de recursos extraordinários examinando a vinculação a temas de repercussão geral.
O que une todas essas inovações é objetivo de aperfeiçoamento institucional do Judiciário, que pode ser expresso através de finalidades, como, por exemplo, ampliação do acesso à justiça; estímulo à solução mais apropriada de conflitos e à autocomposição; diminuição do estoque processual, período de tramitação e ampliação da celeridade; redução de custos e tempo associados a tarefas repetitivas; aprimoramento na gestão de pessoas.
Todavia, ao mesmo tempo que as tecnologias se tornam mais disponíveis, amplia-se o debate a respeito dos elementos éticos, regulatórios e de governança que precisam orientar a sua utilização no Judiciário, a fim de que se assegure respeito aos direitos fundamentais, rule of law e garantias processuais; previna-se a discriminação, simultaneamente à promoção de inclusão; existam regras claras para responsabilização e accountability das partes interessadas; se cumpram requisitos de transparência, autonomia do ser humano, segurança cibernética, privacidade e proteção de dados pessoais.
Essa preocupação está evidenciada, em âmbito nacional, no Conselho Nacional de Justiça quando através da Portaria nº 197, em 22/11/2019, instituiu grupo de trabalho destinado à elaboração de estudos e propostas voltadas à ética na produção e uso de IA no Poder Judiciário, assim como na consulta pública lançada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia sobre a Estratégia Brasileira de IA, voltada para a construção de parâmetros jurídicos, regulatórios e éticos para orientar o desenvolvimento e aplicação da tecnologia, equilibrando a proteção de direitos, as estruturas que incentivam o surgimento dessas novas soluções e a segurança jurídica quanto às responsabilidades das partes que exercem algum papel na cadeia de valor de sistemas autônomos.
Wilson Sales Belchior – Advogado e graduado em direito pela UNIFOR, especialista em Processo Civil pela UECE, MBA em Gestão Empresarial e mestre em Direito e Gestão de Conflitos na UNIFOR. Também possui curso de curta duração em resolução de conflitos na Columbia Law School, nos Estados Unidos. Na mesma instituição participou de série de pesquisa avançada. Palestrante, professor universitário em cursos de pós-graduação em diferentes estados e autor de diversos artigos e livros, publicados em revistas, jornais, portais de notícias e editoras de circulação nacional. Conselheiro Federal da OAB (2013-2015). Vice-presidente da Comissão Nacional de Advocacia Corporativa do Conselho Federal da OAB (2013-2015). Membro da Comissão Nacional de Sociedade de Advogados do Conselho Federal da OAB (2010-2012). Membro da Coordenação de Inteligência Artificial do CFOAB (2018). Atualmente é Conselheiro Federal eleito para o triênio 2019-2021 e Presidente da Comissão Nacional de Direito Bancário.