Cotidiano

Lagamar: dilema no paraíso

O litoral na divisa de São Paulo e Paraná é a maior e mais rica área preservada de Mata Atlântica no Brasil. O preço para mantê-la? O fim da cultura caiçara

Com a intimidade de quem nasceu e cresceu entre rios e canais, Leonildo Fidelis Pereira, de 64 anos, rema todos os dias pelas águas que cortam o maior e mais preservado trecho de Mata Atlântica do Brasil, na divisa entre São Paulo e Paraná. Artesão, pescador e mestre do fandango – uma das músicas típicas dos caiçaras -, Leonildo mora com a família em uma pequena casa de madeira a cerca de uma hora de Vila Fátima, o povoado paranaense mais próximo. Não tem geladeira, fogão a gás, TV ou telefone e nunca foi à escola. Sua vida não se distingue muito da vida que seu pai e seu avô levaram, ambos também filhos da terra. Nos últimos 100 ou 150 anos, o isolamento parece ter mantido praticamente intactas não somente a fauna e a flora do lugar como também o ritmo de muitas comunidades que ainda povoam um dos mais importantes sistemas estuarinos-lagunares do mundo, conhecido aqui como Lagamar.

Os Pereiras constituem uma das famílias mais populares da região. Um deles entrou para a história local ao ajudar a fundar, no início do século 20, o Ariri, último vilarejo paulista antes da divisa com o Paraná. Mas se há algo que mudou na vida de Leonildo em relação a seus antepassados foram as restrições da lei com as quais ele e outros caiçaras foram forçados a conviver. Desde que a região começou a ser protegida por leis ambientais e unidades de conservação há duas décadas, a truculência de agentes florestais e as restrições à pesca, à caça, ao plantio de roças, à extração de palmito e ao corte de árvores – para lenha, canoas e instrumentos musicais – balançaram o modo de vida tradicional dos velhos moradores. Muitos acabaram fugindo para as cidades e até o próprio fandango, tão ligado à colheita, esmoreceu.

Esta área maior que o Estado de Alagoas é um dos maiores e mais valiosos complexos de estuários do planeta

“Uma vez, a Polícia Florestal amarrou meu filho na mata e deixou para as mutucas picar”, queixa-se Leonildo. “Outra vez eles entraram em casa, levantaram minha cama, mexeram nas roupas das meninas. Se eu contar quantas vezes aconteceram essas coisas, você nem pensa”, queixa-se ele, sentado à sombra de uma árvore na frente de sua casa, a poucos passos da canoa que ele acabou de encostar na margem do canal.Relatos de abusos e violência como o de Leonildo são ouvidos com freqüência – mas quase nunca divulgados – entre os dois extremos do Lagamar: dos caiçaras da Juréia, no município de Iguape, sul de São Paulo, aos pescadores dos vilarejos vizinhos a Paranaguá, no litoral do Paraná.

Alguns ambientalistas, porém, afirmam que, apesar dos custos sociais, foi em parte graças a essas restrições que as matas, as restingas, as lagunas e os manguezais do Lagamar mantiveram-se tão bem preservados. Rica e paradoxalmente isolada entre Curitiba e São Paulo, a área concentra uma biodiversidade ímpar e serve de refúgio e criatório para espécies raras e ameaçadas, como o mico-leão-da-cara-preta, o papagaio-da-cara-roxa (ou papagaio-chauá) e o jacaré-do-papo-amarelo, além de tartarugas, onças, peixes e golfinhos. Recentemente, até os guarás, aves que estavam extintas na região, voltaram a fazer ninho em plena Iguape.

O que se vê hoje por aqui é talvez ainda muito semelhante ao que Martim Afonso de Sousa viu em 1531 quando ancorou na Ilha do Cardoso. Na região de Cananéia, encontrou 200 espanhóis e mestiços liderados por um tal “Bacharel de Cananéia”, um degredado entre tantos que já viviam na região. A História não tem certeza do nome desse homem, mas sabe que era um português letrado que, antes da colonização oficial, fundara um povoado conhecido como Maratayana. Só em 1532 Martim Afonso fundaria São Vicente, tida como a primeira cidade em terras brasileiras.

No Lagamar existem 37 reservas ambientais. Grande parte quer os nativos fora delas

Por causa de tamanha conservação, a Unesco declarou a região como parte da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Dos 7% que se calcula terem sobrado da cobertura original da Mata Atlântica, a maior extensãocontínua (35 mil quilômetros, área maior que a de Alagoas) da floresta é justamente a do Vale do Ribeira, que se desmancha no Lagamar.

Mas o que fez dessa faixa tropical, espremida entre duas capitais, permanecer tão preservada não foram só as restrições ambientais nem a militância de ONGs preservacionistas. Dom Pedro II está também entre os responsáveis. Atendendo a um pedido dos fazendeiros de arroz do Vale do Ribeira, o imperador, no finalzinho de sua carreira, autorizou a abertura de um canal que encurtava o caminho do Rio Ribeira de Iguape até o braço de mar que banha Iguape. A cidade possuía então um dos mais importantes portos do país, ao lado do Rio de Janeiro e de Salvador.

Batizado de Valo Grande, o canal tinha apenas 4 metros de largura e 2 quilômetros de extensão. O objetivo era permitir que as barcas que desciam com as sacas chegassem mais rapidamente ao porto sem que precisassem ser levadas em carroças ou no lombo de burro.

A obra ficou pronta em 1885. E se revelou uma catástrofe. A força das águas do rio alargou o canal, mexeu com o regime das marés, afetou a pesca e, pior de tudo, assoreou o braço de mar, inviabilizando a navegação de grandes navios.

As economias de Iguape e de Cananéia – até então centros cosmopolitas, com jornais, estaleiros, a primeira Casa da Moeda do país e até um consulado permanente da França – entraram em franca decadência. A economia rural do Vale do Ribeira também naufragou. O canal de Dom Pedro II tem hoje mais de 300 metros de largura; e o braço de mar, profundidade de banheira: chega a 50 centímetros em alguns pontos.

Os agentes ambientais usam até da violência contra os caiçaras para garantir a preservação

Desde então, o Lagamar nunca mais voltou a ser o que era. Os acessos tanto por São Paulo quanto pelo Paraná são limitados e precários, enquanto o Vale do Ribeira conserva alguns dos piores índices de pobreza nos dois estados. “A ausência de bons acessos, o emprego de baixas tecnologias e a migração de moradores para outras regiões em busca de melhores condições ajudaram a manter o Lagamar como está”, avalia o engenheiro florestal Miguel Milano, professor visitante da Universidade do Estado do Colorado, nos Estados Unidos.

Segundo a historiadora Nicia Wendel de Magalhães, o termo lagamar tem sido empregado desde épocas remotas para descrever “depressões no fundo do mar e rios” ou “lagoas de água salgada”, ou então “baías e golfos formando um porto vasto, mais ou menos abrigado”. Tudo isso, diz Nicia, “dá uma boa idéia da paisagem diversificada daquela região costeira”.

Nicia Wendel explica que o Lagamar começou a ser formado há 120 mil anos, quando o degelo das calotas polares elevou o nível das águas e o mar chegou a tocar as encostas da Serra do Mar. Durante o recuo do oceano nos séculos seguintes, surgiram cordões litorâneos e vales profundos – até que o mar chegou a baixar mais de 100 metros. Mais tarde, uma nova porém mais leve inundação trouxe mais sedimentos, formando novas lagunas e restingas. Nesse vai-e-vem das águas, a face atual do Lagamar estava desenhada.

Um erro de Dom Pedro II levou Lagamar à decadência, mas salvou-o das mazelas do progresso

Passados muitos anos das peripécias de engenharia de Dom Pedro II, o Lagamar foi aos poucos ganhando status de santuário ambiental. Muitas espécies marítimas, como camarões, robalos, guarás, garças e colhereiros, dependem das regiões de estuário – ricas em matéria orgânica trazida da serra pelos rios – para cumprirem algumas fases de seu desenvolvimento. Na segunda metade do século 20, e principalmente a partir dos anos 80, dezenas de unidades de conservação foram criadas no litoral e na serra.

Começava aí o drama de algumas das comunidades tradicionais. O primeiro parque foi o da Ilha do Cardoso, estadual, em 1962. Dizem que, devido às pressões das novas regras ambientais, um terço da população (que hoje é de 1200 pessoas) deixou suas casas. Agora a ilha é um dos pontos mais interessantes do projeto de ecoturismo idealizado em 1995 pela Fundação SOS Mata Atlântica no trecho do Lagamar paulista.

Atualmente, 37 unidades de conservação seguram como podem a especulação imobiliária de casas de veraneio, o corte de árvores, a extração de palmito, as plantações extensivas de bananas e a pesca predatória. Algumas dessas unidades têm regras mais flexíveis, como a Reserva Extrativista do Rio Mandira, próxima a Cananéia, onde descendentes de quilombolas cultivam ostras no verão (veja quadro no final da reportagem). Na própria Ilha do Cardoso, os antigos moradores conseguiram concessões para a pesca e o direito de explorar o turismo, recebendo visitantes em suas casas e controlando o fluxo de entrada.

Cortar uma árvore para fazer uma viola, só com autorização do governo – uma espera que pode durar até seis meses

A maior parte das áreas, no entanto, é submetida a regras bem mais estritas. Se o caiçara Leonildo Pereira, que vive na área de influência imediata do Parque Nacional do Superagüi, quiser cortar uma árvore para servir de lenha, para construir uma canoa ou para fazer uma de suas rabecas usadas no fandango, precisa – pelas regras do Ibama – fazer uma solicitação ao governo do Paraná e aguardar uma vistoria dos técnicos do parque. Um trâmite que, segundo a chefe do parque nacional, Selma Ribeiro, dura em média seis meses.

“Tenho até pena de alguns moradores. Acho que eu não teria a paciência que eles têm. Se eles cortarem uma árvore e derem o azar de serem pegos pela Polícia Florestal, podem ser até presos”, desabafa Selma. Ela diz que o artigo 42 do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), publicado em 2000, prevê que, enquanto as comunidades não forem retiradas das unidades e indenizadas, um termo de compromisso deve ser firmado de modo a garantir que elas possam preservar sua cultura, seu modo de vida e sua dignidade.

A região põe em discussão um velho modelo ambiental: a população nativa e a natureza podem conviver em paz?

Em 2005, um conselho foi criado para discutir essas condições com moradores do parque e seu entorno. Se tudo caminhar como previsto, eles poderão ter mais flexibilidade para pesca e roçado em algumas áreas e em alguns momentos do ano. Ambientalistas como Miguel Milano reagem dizendo que a pressão do homem sempre causou impacto e que as áreas de proteção integral – que hoje somam menos de 5% do território brasileiro – devem, sim, ser privadas da presença humana.

O modelo de preservação do Lagamar – e de quase todo o Brasil — foi o mesmo que durante anos reinou nos Estados Unidos e na Europa, onde se adotou a política de retirar populações locais de áreas preservadas. “Nos anos 80, os africanos e os hindus reagiram a essas políticas e até o Banco Mundial começou a prestar atenção”, diz Antonio Carlos Diegues, ex-funcionário da agência de refugiados da Organização das Nações Unidas, o Acnur. “Surgiu então uma tendência de integrar as populações tradicionais às áreas protegidas.

É o que se chamou de conservacionismo social. “O modelo antigo, no entanto, ainda domina boa parte do debate ambientalista no mundo. “Oitenta por cento do dinheiro que vem para o Brasil das grandes ONGs internacionais e dos programas de cooperação é voltado para a formação de parques onde não deve existir população”, critica o pesquisador – que, depois de ter partilhado com colegas, incluindo o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto no Iraque, o Prêmio Nobel da Paz concedido ao Acnur em 1988, vive e trabalha hoje numa casa colonial de Cananéia.

O ideário conservacionista, defendido por Diegues, reflete bem a visão dos caiçaras. “Os moradores locais ajudam a preservar. Ninguém quer devastar nada”, diz Ibison Oliveira, um dos representantes dos moradores do Parque Estadual do Jacupiranga, que se estende a partir de Cananéia. Sua bandeira é que os limites do parque sejam redefinidos para liberar o roçado e o extrativismo em zonas habitadas por famílias tradicionais.

Na Juréia, com mais ou menos as mesmas queixas, os moradores defendem a idéia de reclassificar a área de proteção integral para área de uso sustentável. A discussão foi parar numa comissão criada pelo governo do Estado e dá arrepios em muitos ambientalistas.

“O grande problema é que o mundo urbano trouxe o apelo ao consumo”, admite Ezequiel de Oliveira, de 66 anos, um caiçara arguto e articulado cuja família se instalou em 1850 na Ilha do Cardoso. “O caiçara nunca teve a coisa de juntar capital. Sempre cultivou o que plantava”, analisa. Antes, cita como exemplo, só se usava folha de mamoeiro para fazer espuma na hora de lavar roupa e areia para arear panela. “Hoje é preciso sabão, amaciante e Bombril”, diz, rindo.

Ele também se rendeu à modernidade. Deixou a canoa por um barco a motor, mas continua acreditando nas lições de convivência pacífica com o Lagamar transmitidas durante 400 anos pela cultura caiçara. A possibilidade de proteger esse rico repositório da Mata Atlântica em conciliação com a permanência das comunidades locais, porém, ainda parece ser uma pergunta sem resposta. Ezequiel defende seu peixe: “Acho que dá muito bem para ganharmos mais e melhorar as nossas condições de uma forma equilibrada com a natureza”.

Fonte: Terra

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