A transferência de poder de Fidel Castro para seu irmão Raúl não vai gerar mudanças significativas no regime socialista de Cuba. Isso porque os habitantes da ilha estão fazendo uma "transição suave", nas palavras de Tilden Santiago, um dos brasileiros que mais intimidade teve com Fidel e com o país nos últimos anos.
O petista, de 66 anos, é o embaixador brasileiro em Havana desde o início do governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Foi exonerado oficialmente na semana passada, mas continuará a ocupar o posto até o final deste ano.
Santiago está no Brasil para resolver assuntos particulares, mas garante que voltará a tempo para participar das comemorações de 80 anos de Fidel -que vão coincidir com uma das datas mais importantes da revolução. O ponto alto da festa, que começou na noite desta terça-feira (28), será no próximo sábado, dia 2 de dezembro, quando se espera que Fidel apareça em público pela primeira vez desde sua misteriosa doença. Em mensagem divulgada na noite de terça-feira, Fidel disse que ainda não tem condições físicas de enfrentar "um encontro tão colossal".
Para Santiago, a política interna e externa de Cuba não terá grandes inflexões caso Fidel Castro fique incapacitado de voltar ao poder. "Os cubanos não são bestas, eles sabiam muito bem que Fidel não é eterno", afirmou o embaixador em entrevista ao G1, por telefone.
G1 – Está tudo pronto para uma grande aparição de Fidel?
Tilden Santiago – Por causa da doença de Fidel as comemorações foram espertamente adiadas de 13 de agosto (dia de seu aniversário) para 2 de dezembro, que é a data da chegada do Granma (nome do barco utilizado por militantes que desembarcaram em Cuba no dia 2 de dezembro de 1956, fato considerado decisivo para a vitória revolucionária, três anos depois). Como faz muito tempo que Cuba não realizava um desfile militar, desde a primeira crise do petróleo (1973), será uma grande festa. Claro que a intenção da Junta é que Fidel participe do evento, mas não sei se ele estará lá ou não. Os cubanos não costumam revelar os locais onde Fidel vai estar. Sinceramente, não sei se ele irá.
G1 – Que notícias o senhor tem da saúde dele?
Santiago – Que continua tentando se recuperar. Não sei nada que não seja oficial. Ele acompanha o que acontece no governo, ou por telefone ou por meio do Raúl (Castro), que se encontra sempre com ele. Sei que Fidel não tem condições de exercer uma atividade política intensa, então ele acompanha a política dessa forma.
G1 – O que virá depois de Fidel?
Santiago – Os cubanos não são bestas, eles sabiam muito bem que Fidel não é eterno. E já deram o primeiro passo quando houve essa doença grave: houve um afastamento de Fidel Castro das funções principais e a criação de uma Junta que abrange diversas lideranças, tanto da época da Revolução como as novas cabeças. Então já há essa Junta funcionando sob a coordenação de Raúl Castro. Eles encontraram uma forma de transição que eu chamo de "transição suave". Que ninguém ache que haverá uma transformação brusca em Cuba. Não haverá.
G1 – Fala-me um pouco sobre Raúl Castro. Ele fará algo de diferente?
Santiago – Raúl Castro assumiu o poder não porque é irmão do Fidel, mas por ter acumulado experiência política e revolucionária desde o início de tudo. Depois do triunfo da Revolução, ele participou da administração e de tudo em Cuba. Foi chefe das Forças Armadas, teve um papel importante no desenvolvimento da economia… ele fez por merecer o posto que ocupa. É possível que ele faça, sim, algo diferente, mas do ponto de vista do eixo central da política e da administração, não. Cuba tem um projeto estratégico do socialismo e procurará adaptar esse projeto ao mundo neoliberal em que vivemos. Nesse sentido, será como hoje, não haverá mudanças.
G1 – Os dissidentes podem influenciar de alguma forma esse período de transição?
Santiago – Não. Eles não têm a mínima condição de tomar o poder hoje. Sabem que uma mudança em Cuba passa por uma disputa interna entre aqueles que estão com Fidel. Cuba caminha não para uma sucessão de Fidel, mas para uma transição lenta. Só faltavam os militares brasileiros estarem lá para falar que foi uma transição "lenta, gradual e segura". Eu chamo só de transição suave.
G1 – Qual tem sido o peso do embargo norte-americano?
Santiago – Enorme. Cuba mantém um crescimento apesar do embargo. Mas acho que a tendência [do embargo] é cair. Depois desse absurdo que foram esses anos de Bush no governo, acho que a sociedade americana vai tomar outro rumo em pouco tempo. Cuba mantém até hoje um objetivo estratégico do socialismo. Nesse mundo globalizado, o país teve de fazer um apelo a medidas de natureza capitalista para sobreviver. Há uma grande inversão de capital externo lá dentro que está associado com o Estado. os cubanos tiveram de desenvolver a área do turismo. É um país que deu prioridade à educação, à saúde, à cultura. O livro é o verdadeiro símbolo da Revolução. Esse objetivo eles alcançaram, assim como a eliminação da diferença de classes.
G1 – É um país por ser visto de vários pontos de vista…
Santiago – Claro. Em geral, os ricos acham que é o inferno, a classe média acha que é o purgatório, e os pobres do mundo inteiro acham que é um paraíso. É evidente que Cuba tem muitos passos a serem dados ainda, e em várias áreas, como o transporte ou déficit habitacional. Mas é evidente que um povo como o cubano, que fez o que fez apesar de todo o embargo econômico dos Estados Unidos, superará esses problemas atuais com o tempo.
G1 – Na opinião do senhor, por que Fidel ainda tem tanta importância no contexto mundial?
Santiago – Porque ele marcou a história latino-americana. Ele conseguiu fazer com essa ilha de 11 milhões de habitantes se liberasse da investida do capital e conseguisse traçar um caminho. Veja, enquanto na Europa a esquerda sumiu, na América Latina continua por toda parte. Temos um mulato governando a Venezuela, um migrante trabalhador que governa o Brasil, um indígena que governa a Bolívia, uma mulher que governa o Chile e assim por diante. Isso só acontece porque durante os anos de jejum democrático no mundo tivemos uma Cuba que manteve a resistência. Acho que essa resistência contribuiu para que houvesse um pensamento plural em toda a América Latina e a presença positiva de uma esquerda e uma centro-esquerda na região.
G1